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Robin Hood às avessas

Taxar livros é novo obstáculo para reduzir imenso e perverso fosso social
 
Otávio nasceu na favela e cresceu ouvindo que para ser alguém teria que ser boleiro ou pagodeiro. Ari vivia num lugar ermo e sonhava com a fama, só não sabia como. Esmeralda foi tirada da escola ainda criança para trabalhar como doméstica e viu seu mundo ruir. Dona Lydia cresceu sem saber ler e escrever e teve que pagar um preço alto por isso.
 
Todos eles são personagens reais de um Brasil desconhecido para muitos. Em comum, o fato de terem nascido e crescido em famílias pobres e nenhuma perspectiva de futuro. Só que, em algum momento da vida, algo também em comum selaria seus destinos: por obra e graça sabe-se lá do quê, os livros surgiram em seus caminhos. Algo se descortinou e um mundo novo e desconhecido pareceu, então, possível.

Um vive no Rio. Outro veio de Minas. Um caso se deu no Paraná. E o outro, no litoral paulista. São pequenas histórias —como de tantas Marias, Antônias, Joões ou Josés, que se multiplicam com incrível rapidez país afora e evidenciam, de modo crível, como os livros servem como tábua de salvação para muitos pobres darem a volta por cima.
 
Nesta sexta-feira (23), Dia Mundial do Livro, vale lembrar que, além de entretenimento cultural de qualidade, os livros, tidos como a maior invenção da humanidade no último milênio, propiciam, pelo acesso ao conhecimento e a ampliação do universo cultural dos indivíduos, condições para alçarem voos com autonomia e exercitarem sua plena cidadania.
 
Já são 27 milhões os brasileiros de classes C, D e E que, ao contrário do que supõe o governo, consomem esse tipo de produto. Ainda é pouco. Isso só se tornou possível porque se fez, em 2004, no governo Lula, a desoneração fiscal, que zerou o PIS-Cofins, que ia de 3,65% a 9,5%.
 
Mais que produzir ligeira redução de preços nos anos seguintes, a medida estancou a onda de quebradeiras de editoras e livrarias e animou o mercado a lançar itens mais baratos, como os livros de bolso. Esse é um dos papéis das políticas públicas!

Daí que, agora, com o país e a economia abalados pela pandemia, onerar os livros, como pretende, na contramão da história, o governo, é dar um tiro no pé dos mais pobres. Os 12% de taxas que se pretende na reforma tributária do ministro Paulo Guedes —contrariando a Constituição, que veda que União, estados e municípios onerem os livros— farão subir os preços em 20%, em média. O que hoje custa R$ 50 irá para R$ 60, tornando-o mais caro e inacessível a quem menos pode pagar.
 
Como, na outra ponta, os impostos sobre armas caem e perde-se, uma vez mais, a chance de tributar as grandes fortunas —como os EUA, meca do capitalismo, planejam fazer—, o que se faz por aqui é exatamente uma política de Robin Hood às avessas.

Em outras palavras, tira-se o exemplar, adquirido a duras penas, das mãos dos mais pobres —o que poderia, como indicam os estudos, ser um caminho seguro e barato para reduzir o imenso e perverso fosso social que há— e o destina ao andar de cima.
 
Mesmo podendo pagar pelos livros, sabe-se que muitos desses, por vezes, vão preferir outros artigos mais sofisticados, com maior status e menos perigo para uma sociedade em constante transformação — que, contudo, precisa cada vez mais deles. Uma pena dupla.

*Por Galeno Amorim, ex-presidente da Biblioteca Nacional e do Cerlalc/Unesco (Centro Regional do Livro na América e no Caribe), coordenou a desoneração fiscal do livro, em 2004, e é autor de ‘Histórias de Gente Que Lê’.

*A opinião contida neste artigo é a do autor e não necessariamente exprime o posicionamento da DS Curitiba.

Fonte: Folha de S.Paulo

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