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Regressividade e alíquotas diferenciadas nos tributos sobre o consumo

Benefícios das desonerações aumentam conforme cresce a renda ou o consumo dos beneficiários
 
Nos debates da reforma tributária no Brasil, muito se tem discutido sobre a questão da regressividade do IVA (Imposto sobre o Valor Adicionado) e sobre a necessidade de criação de alíquotas reduzidas ou isenções a certos produtos e serviços – tais como cesta básica, saúde e educação – por conta de sua essencialidade e importância, principalmente para as famílias de mais baixa renda.
 
Essa é uma questão particularmente importante em países como o Brasil em que i) a arrecadação e a carga tributária se concentram prioritariamente em tributos sobre o consumo e ii) apresentam um elevado grau de desigualdade de renda. Em 2018, os tributos sobre bens e serviços corresponderam à maior parcela – 44,74% – da arrecadação total e à maior porcentagem – 14,88% de um total de 33,26% – do PIB.

Ao contrário de países desenvolvidos, que concentram a carga tributária na tributação da renda e patrimônio (média de 13,4% do PIB nos países da OCDE), a tributação do consumo é muito mais relevante em países em desenvolvimento e, por consequência, a discussão sobre a sua regressividade se torna, sem dúvidas, ainda mais importante.
 
Além disso, o debate também é importante em razão do elevado grau de desigualdade social do país, que tem piorado ainda mais com a crise trazida pela pandemia, conforme dados do IBRE/FGV.
 
Apesar de sua evidente importância, o debate sobre a “regressividade” dos tributos sobre o consumo tem sido feito de forma no mínimo apressada no Brasil, sem o aprofundamento que a questão merece e, muito menos, sem levar em consideração a literatura internacional e nacional e todas as discussões e análises empíricas existentes que questionam i) se os tributos são mesmo regressivos e qual a melhor forma para medir a regressividade; iii) quem são os verdadeiros beneficiários de reduções nos tributos e qual o custo-benefício em termos fiscais e distributivos e, por fim, iii) qual a maneira mais eficiente, do ponto de vista econômico e jurídico, para remediar a regressividade.
 
Todas estas questões foram levantadas e debatidas em artigo recentemente publicado pelos professores Rita de la Feria e Michael Walpole, com a finalidade de responder, a partir de um viés da economia política, à seguinte pergunta: “por que o fascínio de aplicar alíquotas reduzidas de IVA tem sido tão difícil de resistir”?
 
Ao discutir a literatura internacional sobre a questão de alíquotas diferenciadas em sistemas de IVA, os autores mostram que a quase unanimidade dos estudos empíricos aponta que alíquotas reduzidas e isenções podem não ter os efeitos econômicos, sociais e distributivos esperados, tendo em vista que i) são as rendas mais altas que se beneficiam de medidas de redução e ii) as reduções e isenções não são repassadas totalmente no preço ao consumidor final.
 
Além disso, demonstram que diferenciação de alíquotas aumenta a complexidade e a litigiosidade do sistema em razão dos debates sobre a qualificação e enquadramento dos produtos ao regime mais benéfico.
 
O objetivo deste artigo será discutir e trazer para o contexto brasileiro apenas uma destas questões: os debates sobre as formas de mensuração da regressividade e dos reais beneficiários de medidas de redução de IVA.
 
Artigos futuros poderão discutir os estudos empíricos que estimam os efeitos das alíquotas diferenciadas nos preços (se reduções de alíquota ou isenções são efetivamente repassadas ao preço pago pelo consumidor) e no contencioso tributário, além dos argumentos centrais dos professores De la Feria e Walpole sobre as resistências políticas à alíquota única e as formas superação destas resistências.
 
Como medir a regressividade do IVA?
 
Primeiramente, a discussão sobre a regressividade do IVA não é tão evidente quanto o debate público sugere e há questões ainda distantes de serem resolvidas, conforme bem apontam De la Feria e Walpole.
 
Em estudo sobre a regressividade do IVA no Canadá, os professores Bird e Smart igualmente apontaram que, na falta de estudos empíricos, “a regressividade presumida dos impostos sobre o consumo pode ser considerada tanto uma questão de fé quanto de fato”.
 
Nesse sentido, de acordo com De la Feria e Walpole, há discussões em aberto sobre como a regressividade do IVA deve ser medida, se em relação à renda ou ao consumo: “o IVA é particularmente regressivo se a regressividade for avaliada em relação ao rendimento, mas muito menos quando é avaliado em relação ao consumo, que é considerado um melhor indicador de bem-estar de vida”.
 
Em recente publicação sobre os efeitos distributivos do IVA em 27 países da OCDE, Alastair Thomas também aponta que a escolha das diferentes metodologias se mostrou determinante nos resultados sobre a regressividade do IVA: “a conclusão comum de que o IVA é regressivo decorreu da análise da carga do IVA medida como uma porcentagem da renda corrente em relação a toda distribuição de renda”.
 
Por outro lado, “estudos que apresentam a carga do IVA como uma proporção das despesas correntes (…), tendem a concluir que os sistemas IVA são relativamente proporcionais ou mesmo ligeiramente progressivos”.
 
Conforme apontado por inúmeros autores, o problema da metodologia baseada na renda é não levar em conta o impacto da poupança e o fato de que “a renda poupada no ano corrente ainda incorrerá em IVA quando eventualmente for consumida”.
 
Bird e Smart igualmente apontam que a alíquota efetiva calculada com base na renda tende a exagerar a regressividade dos impostos sobre o consumo devido ao “fato de a renda familiar poupada não estar imediatamente sujeita a impostos sobre o consumo, e a poupança aumentar com a renda familiar”.
 
Por outro lado, conforme indica Thomas, as despesas correntes em um ano e o IVA incorrido sobre elas “podem ter sido financiados por receitas auferidas em anos anteriores”.
 
No mesmo sentido, Bird e Smart afirmam que “o consumo tende a ser menos volátil do que a renda no curto prazo, porque muitas famílias podem, e usam, a poupança e outros recursos financeiros para suavizar o consumo durante mudanças temporárias de renda”.
 
Desta forma, como a poupança tende a aumentar com o aumento da renda, a carga do IVA calculada com base na renda “diminui em níveis de renda mais elevados – daí a conclusão comum de que o IVA é regressivo”.
 
De la Feria e Walpole, entretanto, contrapõem o pressuposto de que poupança é mero consumo diferido, argumentando que também pode ser geradora de mais renda e que, potencialmente e ad extremis, “transmitida intergeracionalmente a uma época em que o consumo não é mais tributado”.
Assim, para os autores, parece ser mais realista considerar o IVA como imposto proporcional para os estratos mais baixos de renda, em que toda a renda é gasta no consumo, tornando-se regressivo uma vez que parte dessa renda é poupada.
No caso do Brasil, os estudos de Siqueira e outros igualmente discutiram qual a melhor metodologia para medir a regressividade dos impostos indiretos do país, ressaltando, na linha dos debates internacionais, que “há dois fortes argumentos para o uso da despesa de consumo como referência para o cálculo da carga tributária indireta”.
 
O primeiro, de ordem teórica, é que a “renda permanente”, medida pelo consumo corrente, seria a metodologia mais adequada do que a renda corrente porque “as famílias tendem a manter um padrão de consumo ao longo do ciclo de vida, via poupança ou endividamento, mesmo quando a renda sofre flutuações de curto prazo”.
 
O segundo argumento, relativo especificamente ao contexto brasileiro e de ordem prática, “deriva do fato de que os rendimentos das famílias mais pobres são fortemente sub-reportados nas pesquisas de orçamentos familiares”, o que é evidenciado pela presença de elevados déficits nos orçamentos das famílias situadas nos estratos inferiores de renda, nos quais a renda reportada é muito inferior às despesas. (…) Como resultado, uma vez que o pagamento dos tributos indiretos é estimado com base na despesa de consumo das famílias, a regressividade da tributação indireta é fortemente superestimada quando se utiliza a renda (principalmente a renda monetária) como base de avaliação da carga tributária”.
 
Afinal, os tributos sobre o consumo são regressivos?
 
Conforme discutido acima, os estudos de Thomas, Bird e Smart e, no caso brasileiro, de Siqueira e outros, apontam que a melhor forma de medir a regressividade de tributos sobre o consumo é usar como parâmetro a despesa de consumo e não a renda corrente.
 
Desta forma, os estudos que analisaram a regressividade sob este viés concluíram que os tributos sobre bens e serviços são, em geral, proporcionais ou levemente progressivos (ou seja, alíquota efetiva do tributo equivalente ou muito próxima para os diferentes patamares de renda ou consumo).
 
Os resultados do estudo de Thomas em 27 países da OCDE demonstraram que o IVA parece ser regressivo quando medido como uma porcentagem da renda corrente em todos os países estudados, mas geralmente proporcional ou ligeiramente progressivo quando mensurado como uma porcentagem das despesas.
 
O artigo também mostrou, tal como discutido acima, “o efeito de distorção do comportamento da poupança sobre os resultados quando medidos como uma porcentagem da receita, mostrando que os resultados baseados nas despesas provavelmente fornecem uma estimativa mais significativa do efeito distributivo do IVA”.
 
O estudo de Thomas conclui que o fato de o IVA ser, em geral, aproximadamente proporcional ou ligeiramente progressivo, se deve à presença de alíquotas reduzidas e isenções e que sistemas de IVA de base ampla (com poucas alíquotas reduzidas ou isenções), tais como Chile, Hungria, Letônia e Nova Zelândia, ainda podem produzir um pequeno grau de regressividade.
 
Em estudo sobre a regressividade dos tributos sobre o consumo no Canadá utilizando também a metodologia baseada no consumo, Bird e Smart concluem que a alíquota efetiva do GST Federal aumenta levemente com o aumento de renda, o que indica uma pequena progressividade e isso ocorre “em razão das isenções” existentes no sistema; já os tributos provinciais são aproximadamente proporcionais e os tributos seletivos (excise taxes) são regressivos.
 
Com relação ao Brasil e tal como as conclusões da literatura internacional, os estudos de Siqueira e outros mostram que, quando a renda familiar é usada como parâmetro para avaliar o peso dos tributos sobre o consumo, estes se revelam bastante regressivos, com a carga variando entre 34,2% para os mais pobres e para 11,9% para os mais ricos.
 
Entretanto, quando a despesa familiar de consumo é usada como base para medir a carga tributária dos tributos indiretos, a distribuição da carga entre as famílias é proporcional, variando em torno de 17% para todas as rendas.
 
Mais recentemente, ao analisar o ICMS do estado do Rio Grande do Sul, Gobetti igualmente constatou que o imposto é ligeiramente regressivo, com alíquotas calculadas em relação ao consumo variando entre 15% para as rendas mais baixas a 13,5% para as rendas mais altas.
 
Importante ressaltar que, em geral, estes estudos são realizados a partir de sistemas com a presença de alíquotas diferenciadas e isenções, fato que impacta nos resultados. Ou seja, conforme discutido no estudo de Thomas, a proporcionalidade ou leve progressividade do IVA (e, portanto, a sua não-regressividade) provavelmente é alcançada por conta da presença de alíquotas reduzidas e isenções nos sistemas analisados.
 
Por conta disso, as conclusões dos estudos acima descritos podem ser vistas apressadamente por alguns como algo positivo, haja vista que, ao concluírem que os tributos são proporcionais e não regressivos, confirmariam que alíquotas reduzidas e isenções são capazes de eliminar a regressividade do sistema. Na verdade, porém, o que os resultados parecem demonstrar é justamente o contrário.
 
Primeiro, os resultados parecem mostrar que alíquotas reduzidas e isenções podem não ter o impacto esperado no sentido de tornar o sistema mais progressivo e como meio de redistribuição de renda, já que são no máximo capazes de produzir proporcionalidade ou uma progressividade muito limitada.
 
Neste sentido, Thomas destaca que, “mesmo nos países com o uso mais amplo de alíquotas reduzidas e isenções, há muito pouco impacto que o IVA pode ter sobre a redistribuição”.
 
Esta questão também foi levantada por Bird e Smart no estudo sobre os tributos canadenses: se estas não-uniformidades da tributação (tais como isenções ou alíquota zero) estivessem tendo o efeito pretendido (de reduzir o impacto regressivo dos impostos sobre o consumo), “esperaríamos que as alíquotas efetivas baseadas no consumo aumentassem com a receita, em vez de serem aproximadamente constantes”.
 
Em segundo lugar, os resultados indicando a proporcionalidade dos tributos parecem apontar para um elemento crucial ao debate: que as alíquotas reduzidas e isenções beneficiam mais as rendas mais altas, já que estas consomem mais os produtos desonerados em termos absolutos e, a depender do produto, também em termos relativos.
 
Um estudo da OCDE que examinou a efetividade das alíquotas reduzidas de IVA como um meio de redistribuição de renda concluiu que os resultados dependem do objetivo da política tributária que fundamentou a criação de determinada redução.
 
Se a medida foi introduzida com a finalidade de ajudar os mais pobres, como alíquotas reduzidas para cesta básica, tais reduções podem apresentar um efeito progressivo em termos relativos, tendo em vista que o consumo de alimentos desonerados representa uma proporção maior do consumo total nas rendas mais baixas, em comparação com as rendas mais altas.
 
Entretanto, conforme o estudo da OCDE, esta é uma medida ruim para ajudar as famílias mais pobres porque os ricos também são tanto ou muito mais beneficiados com a redução, já que consomem mais do que os mais pobres em valores absolutos.
 
Já no caso de desonerações introduzidas com finalidades sociais, culturais ou outras finalidades não-redistributivas (como, por exemplo, serviço de hotelaria e restaurante) a redução de IVA representa um benefício maior aos mais ricos tanto em termos relativos como absolutos.
 
Segundo o estudo, “resultados semelhantes, mas em menor magnitude em termos absolutos, foram obtidos com relação às alíquotas reduzidas sobre livros, cinema, teatro e concertos”. Dessa forma, parece que a única regressividade presente neste debate é a relativa ao gasto tributário: os benefícios das desonerações e o valor que se deixa de arrecadar em virtude das reduções de imposto aumentam conforme se aumenta a renda ou o consumo dos beneficiários.
 
Esta conclusão foi corroborada no Brasil por um relatório do Ministério da Economia que demonstrou que a política de desoneração do PIS/Cofins da cesta básica é regressiva: os benefícios destinados aos 20% mais pobres da população correspondem a 10,6% do gasto tributário total (aproximadamente R$ 1,6 bilhão em 2017), enquanto a desoneração relativa aos 20% mais ricos se apropriam de 28,8% do total (R$ 4,5 bilhões).
 
Gobetti igualmente concluiu, no caso do ICMS do RS, que entre 40% e 45% das desonerações do Estado beneficiam os 20% mais ricos. Estes dados estão na mesma linha das conclusões de De la Feria e Walpole, para os quais “a análise dos padrões de consumo e distribuição de pagamentos de IVA por decil ou quantil de renda parece indicar (que) (…), tendo em vista que o consumo, até mesmo de itens essenciais, é esmagadoramente (realizado) pelas famílias de maior renda, quando há uma redução de IVA – assumindo que esta redução seja repassada – são essas famílias que principalmente se beneficiam das reduções de IVA”.
 
Por fim, importante também mencionar os estudos de Orair e Gobetti que, medindo a regressividade em relação à renda e não ao consumo, estimaram que o IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) com alíquota única, tal como proposto na PEC 45/2019, poderia ter um potencial menos regressivo do que os atuais tributos sobre bens e serviços, mesmo com todas as alíquotas diferenciadas e isenções hoje existentes.
 
Os estudos empíricos internacionais e nacionais aqui analisados demonstram, assim, que a mensuração da regressividade dos tributos sobre o consumo não é evidente e que os resultados dependem da metodologia utilizada. Metodologia que calcula a regressividade com base na  renda pode trazer resultados distorcidos, já que não leva em consideração o impacto da renda poupada.
 
Dessa forma, o método com base no consumo parece ser o mais acertado. Conforme visto, os estudos baseados neste método demonstram que os tributos sobre o consumo são, em geral, aproximadamente proporcionais ou levemente progressivos, ou seja, a alíquota efetiva suportada por todas as faixas de renda ou de consumo é quase a mesma.
 
Além do mais, os padrões de consumo das famílias indicam que as de mais alta renda  se beneficiam mais de alíquotas reduzidas e isenções, já que consomem mais os produtos desonerados em termos absolutos e, a depender do produto ou serviço, também em termos relativos.
 
*Por Melina Rocha, diretora de Cursos na York University, doutora pela Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3, e Leonel Cesarino Pessoa.

*A opinião contida neste artigo é a do autor e não necessariamente exprime o posicionamento da DS Curitiba.

Fonte: Jota

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