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Alíquota zero das armas: ativismo "do bem" que faz mal para o Direito!

1. Explicando por que não existe “ativismo bom”
 
Já escrevi dezenas de colunas mostrando que não existe bom ativismo. O chamado “bom ativismo” nada mais é do que judicialização, isto é, quando a decisão preenche os requisitos de legitimidade, generalidade-universalidade e exigência de igualdade no que tange a transferência de recursos (são as três perguntas fundamentais já testadas e demonstradas e que estão presentes no voto do Min. Gilmar no caso homeschooling).
 
Por isso, permito-me, mais uma vez, afirmar: ativismo é behaviorismo jurídico; judicialização é algo contingencial. Judicializar é desejável em qualquer democracia. Ativismos não encontra elementos favoráveis. Mas para isso tem de saber separar o joio do trigo. Aliás, como falei dia desses em Congresso de tribunais de contas, o Brasil economizaria bilhões se aplicasse os critérios para diferenciar ativismo de judicialização. Mas parece que não adianta (ver aqui, aqui e aqui).
 
2. A decisão sobre a alíquota da importação de armas
 
Assim, a decisão sobre a alíquota das armas proferida pelo Min. Fachin é ativista. Não há parametricidade atingida pelo ato do poder executivo. Onde a inconstitucionalidade?
 
Mas o que se tem, então? Simples. O STF, se acaso referendar a decisão do min. Fachin, irá dizer que (i) o STF (e não só ele, como qualquer juiz) pode corrigir atos que isentem ou majorem alíquotas de produtos importados, sempre que essa isenção ou diminuição prejudique a indústria brasileira (armas, alimentos, tratores etc.). Ou (ii) o STF irá dizer que pode sindicar atos do Executivo se do ato de importação decorra insegurança para a população (e não só armas). Portanto, uma decisão não é uma “simples decisão”. Há sempre algo que transcende.
 
O “precedente” aqui faz o quê, então? Inaugura duas “teses”: (i) a proteção monocrática da indústria nacional, numa análise econômica do direito, e (ii) o STF como guardião não da Constituição, mas da segurança das pessoas.
 
Sei que a decisão foi bem recebida. Claro: por juízos morais. Se sou contra armas, gostei, algo assim. Porém, se nos atentarmos, com um olhar epistêmico, sobre a legitimidade da decisão, veremos que é mais uma decisão que fragiliza os diálogos institucionais. Quando o judiciário não concorda com um ato ou uma lei, sente-se no direito de anular.
 
É evidente que, se uma lei ou um ato fere a Constituição, deve ser assim declarado, nas variadas formas que existem. Afinal, um ato normativo só tem validade se estiver em conformidade com a CF.
 
Porém, há que se demonstrar as razões pelas quais, por exemplo, um ato que isenta alíquota de importação não faz parte do Poder que possui o Presidente da República naquilo que chamamos de atos administrativos próprios de gestão das políticas públicas. Sim, porque, se o STF pode corrigir a alíquota no caso de armas, poderá fazê-lo em qualquer caso de alíquota. Qual será o limite?
 
Podemos não concordar com a referida isenção da "alíquota das armas". Eu não concordo. Mas não é disso que se trata. Não importa se eu me importo ou não com a importação.
 
3. Precedente? O que é isto? E as alíquotas?
 
De tudo isso, permito-me também dizer que, de há muito, venho alertando para o "problema dos precedentes". Por quê? Porque precedentes são podem ser "fabricados". Eles resolvem problemas do passado e só contingencialmente são transformados em precedentes. Como bem disse o Min. Nunes Marques, Judiciário cuida do passado. Legislativo, do futuro.
 
O precedente mais famoso do mundo não é o caso Marbury v. Madison. O precedente é o que dele decorre. O precedente é extraído da holding da decisão. O precedente não tem relação com Marbury e nem com Madison. O precedente é: O judiciário pode sindicar (leis) atos inconstitucionais do legislativo e do executivo. A Constituição é rígida. Não é flexível. Marbury v. Madison, lido subsequentemente como precedente a partir dos tribunais que ali identificaram uma holding, é muito maior que Marbury e que Madison. Precedente não como regra, mas como aplicação dos princípios subjacentes à razão de decidir que fundamenta uma decisão pretérita, identificada como suficientemente paradigmática para ter força de precedente.
 
Então, mais uma vez, quais são os problemas da decisão do Min. Fachin? Dois: primeiro, porque não há parametricidade; segundo, pelo "precedente" que pode gerar. Explico: Da decisão não se retira "um precedente" (sim, sei que tem de passar pelo Plenário) como "importação de armas não pode ter isenção de alíquota" ou "o STF pode inquinar de inconstitucional um ato administrativo do poder Executivo acerca da importação de armas". Na verdade, armas não tem nada a ver. Como Marbury v. Madison é maior que Marbury e é maior que Madison, o possível e hipotético “precedente” aqui nada teria a ver com alíquota de arma.
 
Marbury v. Madison é maior que Marbury e é maior que Madison. Lembremos disso sempre que se falar em um “sistema de precedentes” por aqui. E quando legitimarmos a tese do “bom ativismo”.
 
POST SCRIPTUM: Sempre é bom ressaltar que...
 
... assim como Marbury v. Madison é maior que Marbury e Madison, também minha crítica aqui transcende a qualquer tipo de pessoalização. Em outros tempos, talvez não fosse necessário dizer, mas quando desacordos teóricos são lidos como ofensas — basta ver os comentários frequentes em sites como é exatamente o caso da ConJur —, é bom dizer.
 
Não estou aqui falando do min. Fachin. Ele é um cavalheiro. Mais que isso: é um democrata. Estamos no mesmo barco, pois. Falo, sempre digo isso, como amicus da Corte. Inimicus ela já tem demais. Não é meu caso. Se critico essa decisão é porque pretendo abordar problemas históricos que são anteriores a mim e ao ministro e, infelizmente, seguirão ainda por muito tempo.
 
Falo da tese de que decisão judicial serve para corrigir problemas políticos – e o problema aqui é o “serve”, porque a premissa é a de que o Direito é (mero) instrumento (da política). Falo do sistema de precedentes que não-funciona-como-um-sistema-de-precedentes porque, por aqui, parece difícil entender o que é um precedente.
 
É disso que falo. Li a decisão de Fachin, respeito sua concepção de Direito, tenho outra. Desacordos teóricos são isso porque o Direito é um fenômeno interpretativo, afinal. Discordo pontualmente de argumentos do Ministro Fachin — (i) a alegação de iminência para decisão monocrática; (ii) a análise meio consequencialista, (iii) meio AED; (iv) uma reivindicação da proporcionalidade de Alexy, que já é tão recheada de problemas por si só (ver o “Ponderação e Arbitrariedade” de Fausto de Morais); (v) o uso ad hoc de princípios sem demonstração de sua aderência e de seu ajuste institucional —, mas disso não se segue que seja o ministro Fachin o problema.
 
O problema é muito maior que ele, do que eu, que este texto, que esse caso específico. É sobre o Direito brasileiro, sobre (i) o significado de precedentes, (ii) sobre princípios constitucionais, (iii) o papel do Poder Judiciário, (iv) sobre freios e contrapesos e (v) sobre como aprendemos — ou podemos aprender — com essas discussões, na busca por localizar bem a Suprema Corte em seu papel institucional, tão fundamental à democracia. Mais do que nunca, ainda, sempre, precisamos falar sobre o Direito. E as grandes questões epistemológicas.
 
*Por Lenio Luiz Streck, jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados.

*A opinião contida neste artigo é a do autor e não necessariamente exprime o posicionamento da DS Curitiba.

Fonte: ConJur

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