Artigos

Imagem

A importância da administração tributária para a justiça fiscal

A economia brasileira tem pela frente um tortuoso caminho para superar a crise provocada pelo coronavírus e os recursos públicos serão vitais para evitar que a economia alavanque uma crise social. As administrações tributárias estão, portanto, desafiadas a aumentar as receitas tributárias para fazer frente aos gastos públicos que serão necessários.
 
Temos, no entanto, um sistema tributário regressivo e incrementar a arrecadação sem promover a correção das distorções do sistema tributário só piora a situação dos mais pobres. Resta-nos fazer o que os países do mundo civilizado fizeram para sair da crise social do pós-guerra: tributar a renda e a riqueza dos super-ricos e reduzir os impostos sobre os mais pobres. Com isso, atingimos dois objetivos com uma única ação: a redução da concentração de renda e riqueza e a recuperação da economia brasileira[i].
 
Não se pode esquecer, contudo, o papel estratégico da administração tributária para o incremento da arrecadação e para implementar efetivamente não apenas eventuais novas medidas legais, mas também a legislação atualmente em vigor.
 
Infelizmente, nos debates sobre a reforma tributária, salvo algumas exceções, a importância da administração tributária para a efetividade do sistema tributário tem sido negligenciada.
 
Não basta o país ter um belo desenho normativo da tributação. É necessário ter uma administração tributária preparada e aparelhada que possa implementar a legislação. Isso é essencial para um bom funcionamento do sistema tributário.
 
Uma administração aparelhada é aquela que possui as ferramentas adequadas para desempenhar satisfatoriamente a sua função, que é garantir a implementação das leis. Isso significa ter informações fiscais, inclusive bancárias, tecnologia, pessoal capacitado e treinado.
 
A ausência ou insuficiência desses elementos fragiliza a administração tributária, impossibilitando-a de cumprir suas obrigações e de cobrar os tributos daqueles que os sonegam.
 
Quais as consequências de uma administração tributária frágil?
 
A administração tributária é essencial ao funcionamento do Estado, porque sem receitas o Governo não vive, nem desempenha suas funções.
 
Nossa Constituição definiu que é objetivo fundamental da nação brasileira promover o bem de todos, assumindo o Estado o papel de provedor da igualdade e da justiça. As bases do Estado do bem-estar social estão postas, mas apenas uma administração tributária eficiente é capaz de arrecadar dentro dos princípios da justiça fiscal. Fragilizar a máquina fiscal é fragilizar o Estado enquanto provedor de bens públicos.
 
Vimos nessa pandemia que a atuação exemplar de instituições públicas, tais como o SUS, a Fio Cruz, e o Instituto Butantã, evitou maiores males à sociedade. Muito provavelmente mais vidas teriam sido salvas se o Estado não tivesse sido desmontado com a aplicação das políticas neoliberais.
 
Se a administração tributária se fragiliza, os tributos acabam transferidos para os mais pobres e para os contribuintes que não podem escapar ao ônus tributário, tornando o sistema tributário ainda mais injusto e regressivo. Observamos claramente essa tendência no Brasil nos últimos 25 anos com o aumento da participação de tributos considerados de “fácil arrecadação”, como CPMF, Cofins e PIS. As consequências de uma administração tributária frágil são várias, entre elas:
 
  • competição desleal entre empresas;
  • ampliação da concentração de renda;
  • inviabilização do Estado de bem-estar social;
  • perda de confiança dos cidadãos nos governos e nas políticas públicas.
A quem interessa uma administração tributária ineficiente?
 
Os profissionais da fiscalização tributária deparam-se frequentemente com obstáculos que geram exaspero e sensação de impotência por impedi-los de cumprir seu papel de auditor(a). Faltam-lhes, muitas vezes, informações, softwares e equipamentos adequados para executar o trabalho.
 
A quem interessa essa debilidade? A resposta pode estar nos estudos desenvolvidos por Nicholas Kaldor, renomado economista húngaro formado por Cambridge, que visitou o Brasil nas décadas de 1950/1960. Kaldor contribuiu muito para o tema específico da administração tributária.
 
O economista húngaro, examinando nossa baixa arrecadação de receitas, concluiu que tal fato se devia à nossa incapacidade de tributar os mais ricos, por termos fracas administrações tributárias. Segundo Kaldor, para um bom funcionamento do sistema tributário, é fundamental uma administração tributária eficiente.
 
Kaldor dizia que “Nunca é demais insistir que a eficácia do sistema tributário não é apenas uma questão de legislação tributária apropriada, mas também de eficiência e integridade da administração tributária”. Ele acrescentava que as administrações dos países subdesenvolvidos “sofriam tanto de uma insuficiência de quadros como do nível relativamente baixo de qualificação e treinamento dos funcionários”[ii].
 
O economista afirmava que as propostas para a solução destes problemas não geravam grandes controvérsias do ponto de vista técnico ou econômico. A grande dificuldade era de natureza política.
 
Kaldor chegou a dizer a seguinte frase: “Sem dúvida, um sistema fiscal  ineficiente será sempre preferido por todos aqueles a quem um sistema adequado e eficiente possa afetar, e como estes formam o grupo de maior influência na sociedade, surgem os mais formidáveis obstáculos políticos contra a criação de qualquer sistema eficaz de tributação.”
 
É inegável que as administrações tributárias brasileiras melhoraram nos últimos anos, sobretudo com o advento da informatização. Permanecem, contudo, alguns “formidáveis obstáculos políticos”, como, por exemplo, o acesso a dados bancários para os fiscos estaduais e municipais.
 
A insuficiência de receitas públicas reflete, portanto, em grande parte, a incapacidade de tributar os setores mais ricos da sociedade, bem como de cobrar e arrecadar o que eles devem aos cofres públicos.
 
A fragilidade da administração tributária e a existência de um sistema tributário injusto não são obras do acaso e resultam de decisões políticas ou da ausência delas.
 
Se não existem entraves legais para a troca de informações entre as fazendas públicas, o que explica a falta de acesso aos dados bancários pelo Fisco estadual e municipal?
 
Propostas de cooperação entre os Fiscos brasileiros
 
Não há dúvida da evolução do Fisco brasileiro nos últimos anos. Há, contudo, um caminho a percorrer para a construção de um federalismo cooperativo, com vista a garantir atuações integradas entre as Fazendas Públicas, compartilhando cadastros e informações fiscais, como prevê a Constituição Federal[iii].
 
Evoluímos também na obtenção de informações sobre os contribuintes com o SPED – sistema público de escrituração digital, as notas fiscais eletrônicas e declarações fiscais. Mas não é o suficiente. Precisamos realizar um intercâmbio de inteligências, de forma a colocar a informação pronta a atender aos interesses de todos os fiscos, inclusive os que têm menor potencial em termos de recursos humanos e técnicos.
 
Uma possível solução para o problema seria um acordo nacional de cooperação e intercâmbio automático de informações fiscais, inclusive de dados bancários e de operações de investimentos em ativos, derivativos, câmbio e criptomoedas, disponibilizados para todas as administrações brasileiras, com os devidos controles de acesso e  garantias para a proteção dos direitos dos contribuintes, em especial quanto à confidencialidade das informações e ao seu uso apenas para os fins previstos.
 
Não faz sentido a ausência de cooperação entre os fiscos brasileiros para troca automática de informações, uma vez que a nível global já existe tal cooperação. 
 
O Brasil assinou e ratificou em 2015 a “Convenção Multilateral sobre Assistência Mútua Administrativa em Assuntos Tributários” junto à OCDE, visando evitar perda de arrecadação, evasão e fraude fiscais. O acordo entrou em vigor em 2016 e possibilita o intercâmbio automático de informações para fins tributários entre mais de 100 países. Prevê também diversas formas de assistência administrativa em matéria tributária, inclusive fiscalizações simultâneas e, quando couber, a assistência na cobrança dos tributos.
 
A troca automática de informações dá-se por meio de um relatório padronizado (denominado CRS, do inglês Common Reporting Standard) definido pela OCDE. O relatório fornece informações financeiras de residentes domiciliados para fins tributários nos países signatários da Convenção. Dessa forma, a Receita Federal do Brasil tem acesso a informações financeiras de pessoas físicas e jurídicas brasileiras de contas bancárias mantidas em países signatários do Acordo.
 
A experiência mostra, portanto, que é perfeitamente possível criar um sistema de troca automática de informações entre as administrações tributárias brasileiras. Falta ainda determinação política dos dirigentes do país.
 
Vivemos numa sociedade na qual é indispensável a cooperação, não apenas entre pessoas, mas também entre órgãos públicos e entidades da sociedade civil. Afinal, como já disse o poeta e filósofo estoico Sêneca:
 
 “Somos ondas do mesmo mar, folhas da mesma árvore, flores do mesmo jardim.”
 
por Clair Hickmann e Fátima Gondim*
 
*Clair Hickmann é Auditora Fiscal da RFB aposentada, Diretora do Instituto Justiça Fiscal e membro do coletivo Auditores Fiscais pela Democracia. 
 
Fátima Gondim é Auditora Fiscal da RFB aposentada, Conselheira do Instituto Justiça Fiscal e membro do coletivo Auditores Fiscais pela Democracia.

A opinião contida neste artigo é a do autor e não necessariamente exprime o posicionamento da DS Curitiba.

Fonte: IJF

Categorias:

Comente esta notícia

código captcha
Desenvolvido por Agência Confraria

A Delegacia Sindical de Curitiba do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Sindifisco Nacional) utiliza alguns cookies de terceiros e está em conformidade com a LGPD (Lei nº 13.709/2018).

Saiba mais sobre o tratamento de dados feito pela DS Curitiba CLICANDO AQUI. Nessa página, você tem acesso às atualizações sobre proteção de dados no âmbito da DS Curitiba, bem como às íntegras de nossa Política de Privacidade e de nossa Política de Cookies.