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A dignidade do trabalhador não tem preço

O Tribunal Superior do Trabalho (TST) divulga anualmente o Relatório Geral da Justiça do Trabalho. O documento reúne os dados estatísticos referentes aos processos que tramitaram nos três graus de jurisdição.  De acordo com o “Relatório Analítico 2016”, foram pagos aos trabalhadores, R$ 24.358.563.331,43 – valores decorrentes de acordos judiciais e de execução de sentenças[1].
 
É indiscutível que estatísticas são importantes, sobretudo quando a sociedade em geral tem acesso às mesmas. Porém, em meio a tantos dados numéricos, nasce uma reflexão, que facilmente pode passar despercebida: a Justiça do Trabalho e toda a sua finalidade podem ser mensurados somente em números?
 
Não sejamos ingênuos. Como bem apontou Tarso Genro na obra Introdução Crítica ao Direito do Trabalho, “não é novidade para ninguém que perpassa em toda a doutrina (tradicional) a profunda convicção de que através do Direito do Trabalho é possível tornar justas as relações sociais decorrentes do modo de produção capitalista”[2].
 
Não se pode esquecer que o Direito do Trabalho é, sim, uma conquista dos trabalhadores – porém, cabe assinalar que, ao mesmo tempo, também é uma concessão das classes proprietárias dos meios de produção, para que o Estado absorva e atenue os conflitos dentro de determinadas condições de controle, através da legislação que, nesse aspecto, deve servir para a manutenção do sistema econômico vigente.
 
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Considerando a premissa de que o Direito do Trabalho busca tornar minimamente justas as relações de troca decorrentes do sistema capitalista, faz-se o questionamento: é possível tornar justa a relação de exploração do homem pelo homem? É possível legitimar a exploração do trabalho pelo Capital?
 
O Direito burguês aceita tal situação – da apropriação da “mais-valia” e da exploração das classes dominadas. Quando instaurado um conflito judicial, a Justiça do Trabalho, uma vez solucionado o processo via acordo entre as partes ou execução de sentença, o conflito passa a constar em seus dados estatísticos de resultados anuais.
 
Do mesmo modo, não se pode esquecer que a relação de trabalho é uma relação de poder.
 
Durante a vigência da relação de trabalho, o empregador possui as mais diversas formas de efetivar o seu poder perante o empregado, sobretudo através da subordinação. Através da disciplina e do poder diretivo inerente à relação de trabalho, o patrão faz com que a força de trabalho do empregado seja explorada em maior quantidade para a produção do maior lucro possível.
 
Ao empregado só resta recorrer à Justiça do Trabalho. O processo trabalhista é um instrumento de reivindicação do trabalhador, podendo postular o que entenda que lhe é devido. Não se pode esquecer o fato de que a maioria das reclamatórias trabalhistas são ajuizadas somente após a rescisão contratual – o que deixa claro o poder e a subordinação que permeiam a relação de trabalho.
 
Já foi vendida e propagandeada máxima de que o Judiciário trabalhista está afogado pelo excesso de demandas. Alguns vão mais além, chegando a presumir a má-fé do trabalhador que ingressa com um processo trabalhista, afirmando que o faz para enriquecer ilicitamente às custas do patrão. Se tais argumentos se baseiam unicamente em dados, estes mesmos podem ser utilizados para refutar essas falsas afirmações que, ditas diariamente, tornam-se verdades.
 
São vários os conflitos que determinam a instalação do processo trabalhista. Se insistirmos apenas em números, veremos que o Relatório Geral da Justiça do Trabalho comprova que em 2016 a maioria dos litígios trabalhistas foram instaurados em virtude de verbas rescisórias não adimplidas pelo empregador.
 
Ocorre que dados e estatísticas jamais conseguirão abranger a complexidade do conflito existente entre capital e trabalho, entre empregador e empregado, entre explorador e explorado. O que pode passar despercebido – dado o número de demandas que tanto advogados como servidores do Judiciário devem administrar e resolver – é que muitas vezes não é somente a questão monetária que faz com que o trabalhador busque a Justiça do Trabalho.
 
Há outros fatores – que não necessariamente financeiros – que motivam o trabalhador a ingressar com uma reclamatória trabalhista. Conforme já referido, a relação de trabalho é, por si só, uma relação desigual. Durante o contrato de trabalho, a subordinação e o temor reverencial do empregado para com o patrão são obstáculos que impedem que o trabalhador se oponha ao empregador e reivindique seus direitos.
 
Ao longo da relação de emprego, inúmeros direitos trabalhistas podem ter sido sonegados ao empregado, tais como a exigência de realização jornada extraordinária, prestação de serviços em horário noturno, não fruição do intervalo para descanso e alimentação, atrasos salariais, ausência de gozo das férias anuais, exigência de cumprimento de metas abusivas, assédio moral e sexual, enfim… Tais fatores, somados ao longo de anos de trabalho, não afetam somente a situação financeira do trabalhador, mas muito mais que isso: a sua própria dignidade.
 
Russomano diz que o Direito do Trabalho “tutela e protege o próprio ser humano que se empenha no ganho de sua própria sobrevivência”[3] e que o seu objeto está na regulamentação das relações entre empregados e empregadores “garantindo a dignidade do trabalho humano”[4].
 
É a busca pela dignidade, e não somente de valores em dinheiro, que muitas vezes motiva e impulsiona o trabalhador a buscar a Justiça do Trabalho. Isso significa que a Justiça laboral não é um órgão que meramente distribui renda e restitui aos trabalhadores valores que lhes foram retirados ao longo do contrato de trabalho.
 
Não é à toa que a Justiça do Trabalho é o último e, talvez, único reduto onde o trabalhador possa ver-se e sentir-se em condição de igualdade com o patrão. É na audiência trabalhista que isso pode se concretizar: de um lado o empregador, e de outro o empregado, com olhos nos olhos, em pé de igualdade – ainda que meramente jurídica. Na sala de audiência, o empregador fica impossibilitado de exercer o seu poder perante o empregado. Não há espaço para assédio, humilhações e xingamentos daquele que detém os meios de produção contra aquele que possui a somente a força de trabalho.
 
Relatos não faltam. Em audiência trabalhista, disse o obreiro, cuja coluna está seriamente comprometida devido a doença ocupacional causada pelas funções que desempenhava em famoso frigorífico, potência econômica no setor de alimentos e contumaz descumpridor da legislação trabalhista: “Doutor Juiz, eu vim aqui porque quando eu procurei a empresa e contei que estava doente eles não me ajudaram, me mandaram procurar meus direitos. E eu fui.”
 
A busca pela justiça social, um dos fundamentos e objetivos do Direito e da Justiça do Trabalho, não podem ser mensurados apenas em números.
 
Talvez a verdadeira justiça esteja no fato de o trabalhador poder sentar-se, frente a frente com o empregador, para reivindicar seus direitos. Quem sabe a sentença mais favorável ao pleito do empregado não seja suficiente para compensar esse momento único na vida daquele que é explorado.
 
De fato, o Relatório Geral da Justiça do Trabalho confirma que em 2016 foram pagos aos reclamantes mais de vinte e quatro bilhões de reais. Porém, não considera quantos trabalhadores saíram da sala de audiência satisfeitos, aliviados e com a sua dignidade restaurada – tão-somente pelo fato de que o empregador, de quem é credor moral e material, figurou como réu.
 
É por isso que a Justiça do Trabalho não devolve ao trabalhador somente valores em dinheiro que não foram pagos pelo patrão à época da contratualidade. É muito mais que isso: ela garante alguma dignidade ao explorado pelo sistema.
 
Gabriela Goergen de Oliveira é advogada trabalhista, especialista em Direito e Processo do Trabalho.
 
Átila Da Rold Roesler é juiz do trabalho na 4ª Região e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
 
 
[2] GENRO, Tarso Fernando. Introdução Crítica ao Direito do Trabalho. Editora L&PM, 1979, p. 08.
 
[3] RUSSOMANO, Mozart V. O empregado e o empregador no Direito Brasileiro. Editora José Kemfino, 1958, v.1, p. 49.
 
[4] Ob. Cit., p. 37.

Fonte: Carta Capital

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